terça-feira, 14 de junho de 2016

Alice no país da Amoris Laetitia - Parte 01


Alice no país da "Amoris Laetitia" [Parte 01]

A dilacerante crítica da Exortação pós-sinodal por parte de uma estudiosa australiana. "Perdemos todo ponto de apoio e caímos, como Alice, em um universo paralelo, no qual nada é o que parece ser".

A autora é Anna M. Silvas, uma das estudiosas dos Padres da Igreja, sobretudo orientais, mais famosas do mundo. Pertence à igreja greco-católica da Romênia e vive na Austrália, em Armidale, Nova Gales do Sul.

Ensina na Universidade de Nova Inglaterra e na Universidade Católica Australiana. Seus principais campos de estudo são os Padres de Capadócia: Basílio, Gregório de Nazianzeno, Gregório de Nissa, o desenvolvimento do monaquismo, o ascetismo feminino no início do cristianismo e da Idade Média.

Também ministra cursos sobre o matrimônio, a família e a sexualidade na tradição católica no Pontifício Instituto João Paulo II para Estudo sobre o Matrimônio e a Família em Melbourne.

O que se segue é seu comentário à Exortação apostólica pós-sinodal "Amoris Laetitia", pronunciada diante de um grande público, com bispos e sacerdotes, e publicado posteriormente no site da paróquia do Beato John Henry Newman de Caulfield do Norte, próximo de Melbourne.

O texto original está enriquecido com algumas notas de pé de página e um epílogo com uma passagem de São Basílio, aqui omitidos. Mas não falemos mais nada. O comentário de Anna M. Silvas é de leitura obrigatória. Brilhante, afiado, competente e sincero. Um exemplo luminoso dessa "parresía" que é dever de todo batizado.

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ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A "AMORIS LAETITIA"
Por Anna M. Silvas

1. INTRODUÇÃO

Nesta apresentação gostaria de destacar algumas das questões que mais me preocupam sobre a Amoris Laetitia. Estas reflexões estão divididas em três seções. A primeira parte explicará de forma ampla as preocupações gerais; a segunda se concentrará no lamentavelmente famoso capítulo oito; a terceira tratará sobre algumas implicações que a Amoris Laetitia causa aos sacerdotes e ao catolicismo.

Sou consciente de que a Amoris Laetitia, por ser uma exortação apostólica, não goza de infalibilidade. No entanto, é um documento do Magistério Ordinário pontifício e, portanto, faz com que a ideia de o criticar, sobretudo doutrinalmente, seja especialmente difícil. Creio que é uma situação sem precedentes. Queria que houvesse um grande santo, como São Paulo, Santo Atanásio, São Bernardo ou Santa Catarina de Sena que tivesse a coragem e as credenciais espirituais, como por exemplo, a capacidade de profetizar a verdade absoluta, para que dissesse a verdade ao sucessor de Pedro e o levasse de volta a uma posição conceitual melhor. Nestes momentos parece que a hierarquia da Igreja entrou em uma estranha paralisia. Talvez esta seja a hora dos profetas, mas dos verdadeiros profetas. Onde estão os santos de "nooi" (intelecto), purificados pelo contato prolongado com Deus vivo na oração e na ascese, dotados de palavra inspirada, capazes de levar a cabo uma tarefa como esta? Onde estão estas pessoas?


2. PREOCUPAÇÕES GERAIS

Gravadas em tábuas de pedra pelo dedo do Deus vivo (Ex 31, 18; 32, 15), as dez "palavras" proclamadas para a humanidade de todos os tempos: "Não cometerás adultério" (Ex 20, 14) e "Não cobiçarás a mulher do teu próximo" (Ex 20, 17).

Declarou inclusive Nosso Senhor: "Quem repudiar sua mulher e se casar com outra comete adultério contra aquela" (Mc 10, 11).

E o apóstolo Paulo o repetiu: "Por isso, enquanto o marido vive, será chamada adúltera caso se una a outro homem" (Rom 7, 3)

Como um silêncio ensurdecedor, o termo "adultério" está totalmente ausente do léxico da Amoris Laetitia. No entanto, encontramos algo chamado "uniões irregulares" ou "situações irregulares", com "irregular" entre aspas como se o autor quisesse se manter à distância.

"Se tu me amas, guardas meus mandamentos", disse o Senhor (Jo 14, 15). E o Evangelho e as Cartas de João repetem esta advertência do Senhor de várias formas. Isto não significa que nossa conduta esteja justificada por nossos sentimentos subjetivos, mas que a nossa disposição subjetiva se verifica em nossa conduta, ou seja, em nosso ato de obediência. Infelizmente, quando lemos a Amoris Laetitia vemos que também os mandamentos estão de todo ausentes de seu léxico, como a obediência. No seu lugar encontramos algo chamado "ideais", que aparecem repetidamente em todo o documento.
Outra expressão chave que não encontro na linguagem deste documento é "temor de Deus". Ou seja, esse sobressalto diante da realidade soberana de Deus que é o princípio da sabedoria, um dos dons do Espírito Santo na Confirmação. Mas faz tempo que este santo temor desapareceu de uma grande parte do discurso católico moderno. Trata-se de uma expressão semítica que se traduz como "eulabeia" e "eusebia" em grego, ou como "pietas" e "religio" em latim, o coração de uma disposição para com Deus, o autêntico espírito da religião.

Falar de eternidade é propor dois caminhos, o da
salvação e o da perdição
Outro termo de linguagem que falta na Amoris Laetitia é o da salvação eterna. Não há almas imortais que desejam a salvação neste documento! Certamente encontramos "vida eterna" e "eternidade" citada nos números 166 e 168 como um aparentemente inevitável "cumprimento" do destino de uma criança, mas sem nenhuma alusão a imperativos de graça e de luta, isto é, de salvação eterna, que fazem parte deste caminho.

Uma vez que a cultura intelectual de cada um é imbuída de fé por ecos de palavras que ouve, a sua ausência produz um som agudo em meus ouvidos. Olhemos agora o que encontramos no próprio documento.

Que razão há para um texto tão prolixo, 260 páginas, mais de três vezes o tamanho da "Familiaris Consortio"? Esta é, sem dúvida, uma grande descortesia pastoral. E, no entanto, o Papa Francisco quer que se leia "pacientemente, parte por parte" (n. 7). Pois bem, alguns de nós o tivemos que fazer. Grande parte do texto é chato e sem substância. Em geral, acho o discurso do Papa Francisco, não somente neste caso, mas em geral, plano e unidimensional. Poderia defini-lo "superficial" e também "simplista": nenhuma intensidade sob palavras santas e verdadeiras que nos convidam a mergulharmo-nos na profundidade.

Uma das características menos agradáveis da Amoris Laetitia é a grande quantidade de comentários bruscos e irritantes do Papa Francisco, as frases polêmicas que diminuem muito o tom do discurso. As vezes fica-se perplexo quanto ao fundamento destes comentários. Por exemplo, nas lamentavelmente famosa nora 351, o Papa adverte aos sacerdotes que "o confessionário não deve ser uma sala de torturas". Uma sala de torturas?

Em outra passagem, no número 36, disse: "Com frequência apresentamos o matrimônio de forma que seu fim unitivo, o chamado a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua, fica ofuscado por uma ênfase quase que exclusiva no dever da procriação".

Qualquer um que tenha o mínimo conhecimento do desenvolvimento [n.tr. aprofundamento] da doutrina sobre o matrimônio sabe que o bem unitivo foi recebido com grande e renovada atenção pelo menos a partir da “Gaudium et Spes”, n. 49, com uma precedência histórica de décadas.

Para mim, estas caricaturas impulsivas e infundadas são indignas da dignidade e seriedade que deveria ter uma exortação apostólica.

Nos números 121 e 122 temos um exemplo perfeito da qualidade errática do discurso do Papa Francisco. Traz uma descrição inicial do matrimônio como "sinal precioso" e "imagem do amor de Deus para conosco", e depois de algumas linhas esta imagem de Cristo e de sua Igreja se converte em um "tremendo peso" que é imposto sobre os conjugues. O Papa usou este termo, "peso" no número 37. Mas, quem espera que exista uma imediata perfeição dos esposos? Quem não tem concebido o matrimônio como um projeto de toda uma vida, de crescimento na vivência do sacramento?

A linguagem do Papa Francisco sobre a emoção e paixão (números 125, 242, 143 e 145) não se baseia nos Padres da Igreja ou em mestres da vida espiritual da grande tradição, mas na mentalidade dos meios de comunicação populares. Sua fusão simplista entre "eros" e desejo sexual no número 151 sucumbe na visão secularista e ignora o "Deus Caritas Est" do Papa Bento, imersa em uma exposição meditada do mistério do eros, do ágape e da Cruz.

Incomoda a linguagem ambígua dos números 243 e 246, que faz pensar que o fato de que seus membros [da Igreja] entrem em uma união objetivamente adúltera e sejam, portanto, excluídos da Sagrada Comunhão seja de alguma forma culpa da Igreja, ou que seria algo que a Igreja deveria pedir perdão. Esta é uma ideia que permeia todo o documento.

Várias vezes, durante a leitura deste documento, parei e pensei: "Há muitas páginas que não ouço falar de Cristo." Com bastante frequência somos submetidos a extensas passagens com conselhos paternais que poderia dar também qualquer periodista secular, sem fé, como os que se leem nas páginas do Reader's Digest ou em um destes suplementos sobre estilos de vida que se acrescentam nos jornais do fim de semana.

É verdade que algumas doutrinas da Igreja estão solidamente apoiadas, por exemplo, contra a união de pessoas do mesmo sexo (n. 52) e a poligamia (n. 53), a ideologia de gênero (n. 56) e o aborto (n. 84). Há afirmações sobre a indissolubilidade do matrimônio (n. 63) e seu fim procriativo e um apoio a "Humanae Vitae" (nn. 68, 83), do direito soberano dos pais na educação dos próprios filhos (n. 84), do direito de cada criança a uma mãe e um pai (nn. 172, 175), da importância dos pais (nn. 176, 177). As vezes se encontra um pensamento poético, como por exemplo sobre o "olhar" contemplativo do amor entre os esposos (nn. 127-8) ou sobre o amadurecimento do bom vinho como imagem de amadurecimento dos conjugues (n. 135).

Mas toda esta saudável doutrina é prejudicada, na minha opinião, pela retórica do conjunto da exortação e por todo o pontificado do Papa Francisco. Estas afirmações da doutrina católica são bem-vindas, mas é necessário perguntar: têm de algum modo mais peso que o entusiasmo passageiro e errático do atual titular da Cátedra de São Pedro? O digo muito seriamente. 


Meu instinto diz-me que o próximo tema ameaçado de ruir será o chamado "matrimônio" entre pessoas do mesmo sexo. Se é possível construir uma justificação sobre os estados objetivos de adultério baseando-se no reconhecimento dos "elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à sua doutrina [da Igreja] sobre o matrimônio" (n. 292), "quando a união atinge uma notável estabilidade através dum vínculo público e se caracteriza por um afeto profundo, de responsabilidade para com a prole" (n. 293) etc., até quando se poderá impedir a aplicação do mesmo raciocínio para as uniões de mesmo sexo? E sim, as crianças podem fazer parte desta questão, como bem sabemos pela agenda homossexual. O ex-editor do Catecismo católico [o cardeal Christoph Schönborn], a cuja hermenêutica da Amoris Laetitia, "como desenvolvimento da doutrina", o Papa nos remete, parece estar "evoluindo" sobre a potencial "bondade" das uniões do mesmo sexo.

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Na parte 02 será tratado o polêmico capítulo 8 - Clique para ler

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