terça-feira, 14 de junho de 2016

Alice no país da "Amoris Laetitia" - Parte 02


Alice no país da "Amoris Laetitia" [Parte 02]

A dilacerante crítica da Exortação pós-sinodal por parte de uma estudiosa australiana. "Perdemos todo ponto de apoio e caímos, como Alice, em um universo paralelo, no qual nada é o que parece ser".

Caso ainda não tenha lido a primeira parte da matéria clique aqui.

3. LEITURA DO CAPÍTULO 8

Cardeal Walter Kasper
E tudo isto antes de ler o capítulo 8. Perguntei-me se a extraordinária prolixidade dos sete primeiros capítulos tinha como objetivo esgotar-nos antes de chegar a este capítulo crucial e nos pegar de guarda abaixada. Para mim, todo o teor do capítulo oito é problemático, no somente o número 304 e a nota [de rodapé] 351. Quando acabei de lê-lo pensei: claro como a luz que o Papa Francisco queria desde o princípio introduzir de alguma maneira a proposta Kasper. Aqui está. Kasper venceu. Isto tudo explica os comentários de corte do Papa no final do Sínodo de 2015, quando censurou os "fariseus" de mente estreita, evidentemente referindo-se a quem o havia impedido de obter um resultado ainda melhor no roteiro de sua agenda. "Fariseus"? Que linguagem mais inapropriada! Os fariseus eram, de alguma forma, os modernistas do judaísmo, os mestres de dez mil matizes e, mais oportunamente, os que apoiavam tenazmente a prática do divórcio e do novo matrimônio. Em todo este assunto os verdadeiros análogos dos fariseus são Kasper e seus aliados.

Mas continuemos. As palavras do número 295 sobre as observações de São João Paulo II quanto a "lei da gradualidade", no n. 34 da Familiaris Consortio, parecem-me sutilmente desleais e corruptas porque tentam incorporar e corromper João Paulo precisamente no apoio de uma ética de situação, para opor-se ao que ele dedicou toda a sua amorosa inteligência pastoral e toda a sua energia. Leiamos novamente o que verdadeiramente disse São João Paulo sobre a lei da gradualidade:

"Os esposos... não podem ver a lei só como puro ideal a conseguir no futuro, mas devem considerá-la como um mandato de Cristo de superar cuidadosamente as dificuldades. Por isso, a chamada 'lei da graduação' ou caminho gradual não pode identificar-se com a 'graduação da lei', como se houvessem vários graus e várias formas de preceito na lei divina para homens em situações diversas. Todos os conjugues são chamados, segundo o plano de Deus, à santidade no matrimônio [...]"

A nota 329 da Amoris Laetitia apresenta também outra corrupção oculta. Cita a passagem n. 51 da Guadium et Spes sobre a intimidade da vida conjugal. Mas através de um truque sutil aplica o texto para os divorciados que se casaram novamente. Tais corrupções indicam com segurança que as referências e as notas, que neste documento são utilizadas como pilares, devem ser adequadamente verificadas.


No número 297 já vemos a responsabilidade das "situações irregulares" transmitida ao discernimento dos pastores. Passo a passo, sutilmente, as argumentações levam a uma agenda precisa. O número 299 pergunta como podem se superarem as "diversas formas de exclusão atualmente praticadas" e o número 300 introduz a ideia de um "diálogo com o sacerdote no foro interno". Já não se pode adivinhar aonde vai a argumentação?

O pecado mortal nos afasta de Deus (Is 59, 2)
E assim chegamos ao número 301, que esquece as precauções e desce para o turbilhão das "circunstâncias atenuantes". Aqui parece que a "velha Igreja vil" foi finalmente substituída pela "nova Igreja amável": no passado talvez pensássemos que quem viviam em "situações irregulares" sem arrependimento estavam em um estado de pecado mortal, entretanto, agora é possível que não estejam nem um pouco em estado de pecado mortal e que, de fato, a graça santificante possa estar agindo neles.

Cena de Alice no País das Maravilhas
Depois com um excesso de puro subjetivismo se explica que "uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender 'os valores inerentes à norma'". Aqui está uma circunstância atenuante que supera todas as outras circunstâncias atenuantes. Segundo esta tese, escusamos a inveja original de Lúcifer porque ele tinha "grande dificuldade para compreender" o "valor inerente" da majestade transcendente de Deus? Penso que ao chegar aqui perdemos qualquer ponto de apoio e caímos, como Alice, em um universo paralelo, no qual nada é o que parece ser.

Leia também: O que não te contaram sobre as Orações Eucarísticas

Introduzem-se como fundamento uma série de citações de Santo Tomás de Aquino, sobre as quais não estou qualificada para opinar, somente posso dizer que, obviamente, seria oportuno verifica-las e contextualizá-las [n.tr. já existem tomistas comprovando que o sentido dos textos do Doutor angélico fora corrompido]. O número 304 é uma apologia, tecnicamente elaborada, da moral casuística, argumentada com termos exclusivamente filosóficos, sem nenhuma referência à Cristo ou à fé. Não é possível evitar em pensar que esta passagem é obra de outra mão. Não é o estilo de Francisco, inclusive supondo que seja seu pensamento.

"Mais almas vão para o Inferno por causa dos pecados da Carne
que por qualquer outro motivo" (Nossa Senhora em Fátima)
Por último, chegamos ao ponto crucial, o número 305. Começa com caricaturas medíocres, como se repetem em todo o documento. O Papa Francisco repete e reafirma, agora, a nova doutrina que havia indicado um pouco antes: uma pessoa pode estar em uma situação objetiva de pecado mortal - porque é disto que ele fala - e viver e crescer na graça de Deus, ao mesmo tempo que "recebe a ajuda da Igreja" que, segundo declara a lamentavelmente famosa nota 351, pode incluir "em certos casos" tanto a confissão como a comunhão. Estou segura de que muitos já estão ativamente tentando "interpretar" tudo isto segundo uma "hermenêutica da continuidade" para mostrar sua harmonia, presumo, com a tradição. Poderia acrescentar que neste número 305 o Papa Francisco cita a si mesmo quatro vezes. De fato, parece que para o Papa Francisco o ponto de referência, citado com mais frequência na Amoris Laetitia, seja ele mesmo, o qual, em si mesmo, é interessante.
No resto do capítulo o Papa Francisco muda a direção. Admite de maneira complicada que sua ênfase pode dar "lugar a confusão" (n. 308), ao que responde com uma discussão sobre a "misericórdia". No início do n. 7 havia declarado que "todos se sintam muito interpelados pelo oitavo [capítulo]". Sim, mas preocupado em não o entender com o sentido heurístico que ele lhe dá. O Papa Francisco, francamente, admitiu no passado que ele é o tipo de pessoa que gosta de causar "confusão"? Bem, creio que podemos conceder que aqui, certamente, ele alcançou o tal objetivo.

O Santo que escreveu a Familiaris Consortio
e a Veritatis Splendor
Permitam-me lhes fale um amigo meu, um homem mais bem taciturno e prudente, casado, que antes que a exortação fosse me disse: "Espero realmente que ele evite a ambiguidade!". Pois bem, creio que nem a leitura mais piedosa da Amoris Laetitia permite que se diga que a ambiguidade foi evitada. Usando as próprias palavras do Papa Francisco encontramos "fenômenos ambíguos" (n. 33) neste documento e, atrevo-me a dizer, em todo seu pontificado. Se é impossível a situação de criticar um documento do magistério ordinário, consideremos se na Amoris Laetitia não é o próprio Papa Francisco quem relativiza a autoridade do magistério, debilitando o magistério do Papa João Paulo, sobretudo no que concerne a Familiaris Consortio e a Veritatis Splendor. Desafio a qualquer um a reler com seriedade a encíclica Veritatis Splendor, digamos os números 95 a 105, e não concluir que há uma profunda dissonância entre essa encíclica e esta exortação apostólica. Na minha juventude angustiava-me o enigma: como é possível ser obediente ao desobediente? Porque também o Papa é chamado à obediência, na verdade, de uma forma mais excelente.


4. AS IMPLICAÇÕES QUE EMANAM DA AMORIS LAETITIA

As sérias dificuldades que prevejo, sobretudo para os sacerdotes, surgem do confronto entre as distintas interpretações sobre as brechas discretamente abertas em toda a exortação Amoris Laetitia. O que fará um jovem sacerdote que, bem informado, deseja manter que os divorciados em segunda união não possam receber a comunhão, enquanto que seu pároco tem uma política de "acompanhamento" que, ao contrário, prevê que possa recebê-la? O que fará um sacerdote com um sentido de fidelidade similar se o seu bispo e sua diocese adotar uma política mais progressista? O que fará uma região de bispos diante de outra região de bispos, quando cada grupo de bispos como cortar e dividir as nuances desta nova doutrina, para o que, no pior dos casos, é considerado pecado mortal de um lado da fronteira e "acompanhado" e permitido do outro?

Sabemos que já está ocorrendo, oficialmente, em certas dioceses alemãs e, não oficialmente, na Argentina e inclusive aqui, na Austrália, há anos, como posso verificar em minha própria família.

Um resultado como este é tão desconcertante que poderia marcar, como sugeriu outro amigo meu, também casado, o colapso da história cristã católica. Mas é claro que existem outros aspectos da deterioração eclesial e social que nos levou a este ponto: o estrago da falsa renovação na Igreja das últimas décadas; a incrivelmente estúpida política de inculturação aplicada a uma cultura ocidental sem raízes invadida pelo secularismo militante; a inexorável e progressiva erosão do matrimônio e da família na sociedade, o ataque contra a Igreja, mais intenso desde seu interior que do exterior, como denunciava o Papa Bento; o grande desvio de alguns teólogos e leigos em matéria de anticoncepção; os espantosos escândalos sexuais; os inumeráveis sacrilégios; a perca do espírito da liturgia; os cismas internos "de fato" sobre  uma série de questões enfoques graves, sutilmente disfarçados sob uma aparência de unidade "de iure" da Igreja; os modelos de profunda dissonância espiritual e moral que pululam atualmente sob o vergonhoso título de "católico". E nos surpreendemos de que a Igreja esteja em um estado de debilidade e esteja desaparecendo?

Poderíamos inclusive rastrear os longos precedentes temporais da Amoris Laetitia. Como tenho um espírito um tanto quanto antiquado, vejo este documento como o mal fruto de certos desenvolvimentos do segundo milênio na Igreja ocidental: a forma rigidamente racionalista e dualista do tomismo promovida pelos jesuítas no século XVI e, neste contexto, sua elaboração da compreensão casuística do pecado mortal no século XVII. A arte da casuística foi aplicada a uma nova categoria de ciência sacra chamada "teologia moral", na qual, me parece, a regra de cálculo é sabiamente usada para estimar tecnicamente, caso por caso, a culpabilidade mínima necessária para evitar a imputação de pecado mortal. Que meta espiritual! Que visão espiritual! Hoje a casuística volta a levantar a sua cabeça feia sob a nova forma de ética da situação e a Amoris Laetitia, francamente, está cheia dela, embora tenha sido expressamente condenada por São João Paulo II na encíclica Veritais Splendor.


5. PEJORAÇÃO

Posso lhes exortar de alguma maneira que possa ser de ajuda? São Basílio pronunciou uma grande homilia sobre o texto "Mas tenha cuidado e guarda-te bem" (Dt 4, 9). Antes de tudo devemos ocupar-nos de nossas disposições. Nos Padres do deserto encontramos várias histórias onde um jovem monge persegue sua salvação eterna mediante a heroica mansidão de sua obediência a um abade com sérias imperfeições. E ao final obteve também o arrependimento e a salvação de seu abade. Não devemos deixar-nos tentar por reações de hostilidade ao Papa Francisco, pois corremos o risco de cair no jogo do diabo. Devemos honrar e manter na caridade também a este profundamente imperfeito Santo Padre e rezar por ele. Com Deus nada é impossível. Quem sabe, Deus tenha colocado Jorge Mario Bergoglio nesta posição para encontrar um número suficiente de pessoas que rezem eficazmente pela salvação de sua alma.

Tenho observado que os cardeais Sarah e Pell permanecem em silêncio. Pode ser que seja sábio fazê-lo, pelo menos por enquanto. Enquanto isso, vocês que têm responsabilidades no governo da Igreja terão que dar disposições práticas no que concerne às questões controvertidas da Amoris Laetitia. Antes de tudo, em nossas mentes não devemos ter alguma dúvida sobre qual é e será o ensinamento real do Evangelho. Obviamente, qualquer estratégia de pressão para um esclarecimento oficial da futura prática deve ser tentada. Exorto em particular aos bispos para fazer isto. Alguns de vocês podem encontrar-se em situações muito difíceis quanto a seus semelhantes, quase exigindo as virtudes de um confessor da fé. Estão preparados para os cilícios, metaforicamente falando, que podem receber? Claro que eles podem eleger a ilusória segurança de um vazio convencional e da simpatia superficial, uma grande tentação para eclesiásticos como também para homens de negócios. No aconselho. Os tempos são críticos, talvez muito mais do que suspeitamos. Estamos sendo postos à prova. "O Senhor está aqui. Ele te chama."


6. A DISPOSIÇÃO EUCARÍSTICA APROPRIADA PARA OS DIVORCIADOS EM SEGUNDA UNIÃO

Recentemente um amigo me enviou por e-mail alguns pontos sobre as disposições eucarísticas justas para os que estão em "situações irregulares". Na minha resposta expressei o que pensava sobre o que creio ser a conduta espiritual e sacramentalmente aconselhável para um católico que se encontra na "situação irregular".

Há uma encantadora senhora que vem habitualmente à Missa em nossa catedral e se senta atrás de todos. Tive uma conversa com ela e soube que se encontra em uma destas "situações irregulares", mas é muito diligente em vir à Missa, ainda que não comungue. Não se revolta contra a Igreja, nem diz "É culpa da Igreja" ou "Que injusta é a Igreja", sentimento ouvido de outros, aos quais corrigi com amabilidade. Nestas circunstâncias o comportamento desta senhora é admirável.

A melhor atitude que pode ter na oração quem está nestas situações e ainda não chegou ao arrependimento requerido (e, portanto, a confissão), mas não quer deixar de ver Deus, é apresentar-se diante do Senhor na Missa em seu estado de privação e necessidade, e não sair correndo para "arrebatar" a eucaristia, mas tentando abrir-se para a ação de graças e a uma mudança das circunstâncias, se e quando for possível. Meu pensamento sobre sua situação é a de que é melhor esperar honestamente, ainda que dolorosamente, na tensão de sua situação diante de Deus, sem subterfúgios. Creio que este é a melhor posição para o triunfo da graça.

A comunhão é remédio para a alma que está livre de toda
pecado, mas é condenação para aqueles que querem servir
a dois senhores (I Cor 11, 27)
Quem de nós não se sente identificado com esta situação desigual causada pela luta espiritual da própria vida, como por exemplo, o duro combate que deve realizar diante de uma paixão aparentemente insuperável e da que somente à duras penas se encontra em caminho de saída? O que suportamos quando nos sentimos apanhados durante muito tempo em um pecado antes de que nossa vida moral possa imergir em um lugar de maior liberdade? Recordemos a famosa oração de Santo Agostinho a Deus, antes de sua conversão: "Domine, da mihi castitatem, sed noli modo" (Senhor, concede-me a castidade, mas não agora). Penso que quando estas pessoas assistem à Missa e se abstêm de receber a comunhão possa ser um grande testemunho para os demais. Sim, é um brado que nos convida a examinar nossa própria disposição ao apresentarmo-nos para participar nos santíssimos e deificantes Corpo e Sangue de Nosso Senhor.

A propósito do qual me vem à cabeça uma frase do ator Richard Harris, um católico não-praticante encrenqueiro durante muitos anos: "Eu me divorciei duas vezes, mas prefiro morrer como um mal católico do que fazer com que a Igreja mude para que se adapte a mim".

Há mais honestidade nisto do que... bom, melhor não dizer.

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Fonte: Chiesa Espresso – Por Sandro Magister (Tradução nossa)
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Alice no país da Amoris Laetitia - Parte 01


Alice no país da "Amoris Laetitia" [Parte 01]

A dilacerante crítica da Exortação pós-sinodal por parte de uma estudiosa australiana. "Perdemos todo ponto de apoio e caímos, como Alice, em um universo paralelo, no qual nada é o que parece ser".

A autora é Anna M. Silvas, uma das estudiosas dos Padres da Igreja, sobretudo orientais, mais famosas do mundo. Pertence à igreja greco-católica da Romênia e vive na Austrália, em Armidale, Nova Gales do Sul.

Ensina na Universidade de Nova Inglaterra e na Universidade Católica Australiana. Seus principais campos de estudo são os Padres de Capadócia: Basílio, Gregório de Nazianzeno, Gregório de Nissa, o desenvolvimento do monaquismo, o ascetismo feminino no início do cristianismo e da Idade Média.

Também ministra cursos sobre o matrimônio, a família e a sexualidade na tradição católica no Pontifício Instituto João Paulo II para Estudo sobre o Matrimônio e a Família em Melbourne.

O que se segue é seu comentário à Exortação apostólica pós-sinodal "Amoris Laetitia", pronunciada diante de um grande público, com bispos e sacerdotes, e publicado posteriormente no site da paróquia do Beato John Henry Newman de Caulfield do Norte, próximo de Melbourne.

O texto original está enriquecido com algumas notas de pé de página e um epílogo com uma passagem de São Basílio, aqui omitidos. Mas não falemos mais nada. O comentário de Anna M. Silvas é de leitura obrigatória. Brilhante, afiado, competente e sincero. Um exemplo luminoso dessa "parresía" que é dever de todo batizado.

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ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A "AMORIS LAETITIA"
Por Anna M. Silvas

1. INTRODUÇÃO

Nesta apresentação gostaria de destacar algumas das questões que mais me preocupam sobre a Amoris Laetitia. Estas reflexões estão divididas em três seções. A primeira parte explicará de forma ampla as preocupações gerais; a segunda se concentrará no lamentavelmente famoso capítulo oito; a terceira tratará sobre algumas implicações que a Amoris Laetitia causa aos sacerdotes e ao catolicismo.

Sou consciente de que a Amoris Laetitia, por ser uma exortação apostólica, não goza de infalibilidade. No entanto, é um documento do Magistério Ordinário pontifício e, portanto, faz com que a ideia de o criticar, sobretudo doutrinalmente, seja especialmente difícil. Creio que é uma situação sem precedentes. Queria que houvesse um grande santo, como São Paulo, Santo Atanásio, São Bernardo ou Santa Catarina de Sena que tivesse a coragem e as credenciais espirituais, como por exemplo, a capacidade de profetizar a verdade absoluta, para que dissesse a verdade ao sucessor de Pedro e o levasse de volta a uma posição conceitual melhor. Nestes momentos parece que a hierarquia da Igreja entrou em uma estranha paralisia. Talvez esta seja a hora dos profetas, mas dos verdadeiros profetas. Onde estão os santos de "nooi" (intelecto), purificados pelo contato prolongado com Deus vivo na oração e na ascese, dotados de palavra inspirada, capazes de levar a cabo uma tarefa como esta? Onde estão estas pessoas?


2. PREOCUPAÇÕES GERAIS

Gravadas em tábuas de pedra pelo dedo do Deus vivo (Ex 31, 18; 32, 15), as dez "palavras" proclamadas para a humanidade de todos os tempos: "Não cometerás adultério" (Ex 20, 14) e "Não cobiçarás a mulher do teu próximo" (Ex 20, 17).

Declarou inclusive Nosso Senhor: "Quem repudiar sua mulher e se casar com outra comete adultério contra aquela" (Mc 10, 11).

E o apóstolo Paulo o repetiu: "Por isso, enquanto o marido vive, será chamada adúltera caso se una a outro homem" (Rom 7, 3)

Como um silêncio ensurdecedor, o termo "adultério" está totalmente ausente do léxico da Amoris Laetitia. No entanto, encontramos algo chamado "uniões irregulares" ou "situações irregulares", com "irregular" entre aspas como se o autor quisesse se manter à distância.

"Se tu me amas, guardas meus mandamentos", disse o Senhor (Jo 14, 15). E o Evangelho e as Cartas de João repetem esta advertência do Senhor de várias formas. Isto não significa que nossa conduta esteja justificada por nossos sentimentos subjetivos, mas que a nossa disposição subjetiva se verifica em nossa conduta, ou seja, em nosso ato de obediência. Infelizmente, quando lemos a Amoris Laetitia vemos que também os mandamentos estão de todo ausentes de seu léxico, como a obediência. No seu lugar encontramos algo chamado "ideais", que aparecem repetidamente em todo o documento.
Outra expressão chave que não encontro na linguagem deste documento é "temor de Deus". Ou seja, esse sobressalto diante da realidade soberana de Deus que é o princípio da sabedoria, um dos dons do Espírito Santo na Confirmação. Mas faz tempo que este santo temor desapareceu de uma grande parte do discurso católico moderno. Trata-se de uma expressão semítica que se traduz como "eulabeia" e "eusebia" em grego, ou como "pietas" e "religio" em latim, o coração de uma disposição para com Deus, o autêntico espírito da religião.

Falar de eternidade é propor dois caminhos, o da
salvação e o da perdição
Outro termo de linguagem que falta na Amoris Laetitia é o da salvação eterna. Não há almas imortais que desejam a salvação neste documento! Certamente encontramos "vida eterna" e "eternidade" citada nos números 166 e 168 como um aparentemente inevitável "cumprimento" do destino de uma criança, mas sem nenhuma alusão a imperativos de graça e de luta, isto é, de salvação eterna, que fazem parte deste caminho.

Uma vez que a cultura intelectual de cada um é imbuída de fé por ecos de palavras que ouve, a sua ausência produz um som agudo em meus ouvidos. Olhemos agora o que encontramos no próprio documento.

Que razão há para um texto tão prolixo, 260 páginas, mais de três vezes o tamanho da "Familiaris Consortio"? Esta é, sem dúvida, uma grande descortesia pastoral. E, no entanto, o Papa Francisco quer que se leia "pacientemente, parte por parte" (n. 7). Pois bem, alguns de nós o tivemos que fazer. Grande parte do texto é chato e sem substância. Em geral, acho o discurso do Papa Francisco, não somente neste caso, mas em geral, plano e unidimensional. Poderia defini-lo "superficial" e também "simplista": nenhuma intensidade sob palavras santas e verdadeiras que nos convidam a mergulharmo-nos na profundidade.

Uma das características menos agradáveis da Amoris Laetitia é a grande quantidade de comentários bruscos e irritantes do Papa Francisco, as frases polêmicas que diminuem muito o tom do discurso. As vezes fica-se perplexo quanto ao fundamento destes comentários. Por exemplo, nas lamentavelmente famosa nora 351, o Papa adverte aos sacerdotes que "o confessionário não deve ser uma sala de torturas". Uma sala de torturas?

Em outra passagem, no número 36, disse: "Com frequência apresentamos o matrimônio de forma que seu fim unitivo, o chamado a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua, fica ofuscado por uma ênfase quase que exclusiva no dever da procriação".

Qualquer um que tenha o mínimo conhecimento do desenvolvimento [n.tr. aprofundamento] da doutrina sobre o matrimônio sabe que o bem unitivo foi recebido com grande e renovada atenção pelo menos a partir da “Gaudium et Spes”, n. 49, com uma precedência histórica de décadas.

Para mim, estas caricaturas impulsivas e infundadas são indignas da dignidade e seriedade que deveria ter uma exortação apostólica.

Nos números 121 e 122 temos um exemplo perfeito da qualidade errática do discurso do Papa Francisco. Traz uma descrição inicial do matrimônio como "sinal precioso" e "imagem do amor de Deus para conosco", e depois de algumas linhas esta imagem de Cristo e de sua Igreja se converte em um "tremendo peso" que é imposto sobre os conjugues. O Papa usou este termo, "peso" no número 37. Mas, quem espera que exista uma imediata perfeição dos esposos? Quem não tem concebido o matrimônio como um projeto de toda uma vida, de crescimento na vivência do sacramento?

A linguagem do Papa Francisco sobre a emoção e paixão (números 125, 242, 143 e 145) não se baseia nos Padres da Igreja ou em mestres da vida espiritual da grande tradição, mas na mentalidade dos meios de comunicação populares. Sua fusão simplista entre "eros" e desejo sexual no número 151 sucumbe na visão secularista e ignora o "Deus Caritas Est" do Papa Bento, imersa em uma exposição meditada do mistério do eros, do ágape e da Cruz.

Incomoda a linguagem ambígua dos números 243 e 246, que faz pensar que o fato de que seus membros [da Igreja] entrem em uma união objetivamente adúltera e sejam, portanto, excluídos da Sagrada Comunhão seja de alguma forma culpa da Igreja, ou que seria algo que a Igreja deveria pedir perdão. Esta é uma ideia que permeia todo o documento.

Várias vezes, durante a leitura deste documento, parei e pensei: "Há muitas páginas que não ouço falar de Cristo." Com bastante frequência somos submetidos a extensas passagens com conselhos paternais que poderia dar também qualquer periodista secular, sem fé, como os que se leem nas páginas do Reader's Digest ou em um destes suplementos sobre estilos de vida que se acrescentam nos jornais do fim de semana.

É verdade que algumas doutrinas da Igreja estão solidamente apoiadas, por exemplo, contra a união de pessoas do mesmo sexo (n. 52) e a poligamia (n. 53), a ideologia de gênero (n. 56) e o aborto (n. 84). Há afirmações sobre a indissolubilidade do matrimônio (n. 63) e seu fim procriativo e um apoio a "Humanae Vitae" (nn. 68, 83), do direito soberano dos pais na educação dos próprios filhos (n. 84), do direito de cada criança a uma mãe e um pai (nn. 172, 175), da importância dos pais (nn. 176, 177). As vezes se encontra um pensamento poético, como por exemplo sobre o "olhar" contemplativo do amor entre os esposos (nn. 127-8) ou sobre o amadurecimento do bom vinho como imagem de amadurecimento dos conjugues (n. 135).

Mas toda esta saudável doutrina é prejudicada, na minha opinião, pela retórica do conjunto da exortação e por todo o pontificado do Papa Francisco. Estas afirmações da doutrina católica são bem-vindas, mas é necessário perguntar: têm de algum modo mais peso que o entusiasmo passageiro e errático do atual titular da Cátedra de São Pedro? O digo muito seriamente. 


Meu instinto diz-me que o próximo tema ameaçado de ruir será o chamado "matrimônio" entre pessoas do mesmo sexo. Se é possível construir uma justificação sobre os estados objetivos de adultério baseando-se no reconhecimento dos "elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à sua doutrina [da Igreja] sobre o matrimônio" (n. 292), "quando a união atinge uma notável estabilidade através dum vínculo público e se caracteriza por um afeto profundo, de responsabilidade para com a prole" (n. 293) etc., até quando se poderá impedir a aplicação do mesmo raciocínio para as uniões de mesmo sexo? E sim, as crianças podem fazer parte desta questão, como bem sabemos pela agenda homossexual. O ex-editor do Catecismo católico [o cardeal Christoph Schönborn], a cuja hermenêutica da Amoris Laetitia, "como desenvolvimento da doutrina", o Papa nos remete, parece estar "evoluindo" sobre a potencial "bondade" das uniões do mesmo sexo.

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Na parte 02 será tratado o polêmico capítulo 8 - Clique para ler

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